segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Auréola, candura e... olhos verdes?


"Somos todos anjos com uma só asa: só podemos voar abraçados uns aos outros."
- Luciano de Crescenzo

Meus olhos se abriram lentamente quando alcei voo pela primeira vez.

Lá estava eu, em pleno ar; minhas asas se batiam debilmente em busca de estabilidade; meus pés procuravam - em vão - por algum apoio, enquanto meus braços enrijecidos eram marcados pelas veias saltadas do medo que nelas corria. Rangia os dentes e suava frio, pois já me encontrava há mais de dez metros do solo. Ouvi um som ligeiramente familiar, um som de alerta, mas optei por ignorá-lo. O êstase do voo me havia anuviado os sentidos; todo e qualquer movimento que fizesse naquele instante seria dispensável. Um mero piscar de olhos poderia me custar milésimos de segundo vitais para a apreciação do evento.

Lá de cima, entre nuvens e pássaros migratórios, senti a brisa de meados de outono agitar placidamente meus cabelos. Fechei os olhos e enxerguei, então, o que parecia ser meu rosto lá embaixo, deitado no pavimento, pálido e desfalecido. Mal pude me conter. Como, pensei eu, seria possível que uma mesma pessoa ocupasse dois lugares ao mesmo tempo! Conforme fui me aproximando, não restavam mais dúvidas da identidade do moribundo. Os cabelos negros, a expressão cordial, os olhos astutos de desbravador oriental. Ajoelhei-me diante de mim e sorri. Tão singela era a expressão que despontava em meu semblante! Apesar da aparência mórbida, os lábios ainda sorriam em júbilo reverberante. Toquei meu peito com mãos trêmulas e constatei a verdade: lá dentro, um coração não batia.

Quando abri meus olhos uma vez mais, a cena se havia alterado e um estupor aturdiu-me os sentidos. Jazia meu corpo nu deitado num jazigo de pétalas de rosas brancas. Olhei ao redor e nada pude compreender. Não havia paredes, nem teto ou assoalho, nem tampouco pessoas ou outras entidades que me pudessem explicar o que sucedia. Tomei o pulso do outro eu em mãos e apertei-o contra o peito. Uma lágrima órfã e desmotivada correu por meu rosto até pingar no dedo indicador do cadáver. Notei, então, que apontava em direção a certo ponto na escuridão, onde habitava tão somente um breu indescritível. Ao melhor observá-lo, pude notar dois olhos verdes como brincos de jade a espreitar-me.

- Quem está aí? - perguntei. Em lugar da resposta verbal, a entidade deu dois passos à frente. Era uma mulher. Mas não uma qualquer, como pude constatar posteriormente: tinha asas emplumadas como pombas brancas; face rósea e ruborizada; cabelos ondulados de um castanho-claro encantador, que lhe emolduravam o rosto como um quadro renascentista. Acima de sua cabeça notava-se uma tremeluzente auréola, que reluzia o verde de seus olhos e o refletia em direção ao meu rosto enquanto a encarava atônito.

Era um anjo.

Aproximou-se do eu deitado no leito e debruçou-se sobre ele, baixando a cabeça com a graciosidade de uma bailarina em direção ao seu rosto. Seus lábios se tocaram por uma fração de segundo que para mim durou uma eternidade e, em seguida, ela avançou em minha direção com passos silentes. As palavras que sussurrou em meu ouvido provocaram-me arrepios de imediato; arraigaram-se em minha mente de tal maneira que ainda hoje me posso delas recordar.

Cuida do que é teu, ela dissera, pois pode não haver uma segunda chance.

Assisti-a regressar ao breu de onde irrompera com o mesmo ar de mistério e beleza com que a avistei pela primeira vez. Para minha surpresa, o eu acamado ergueu o tronco até a posição vertical e, sentado, olhou-me no fundo dos olhos. Observei-o de resposta, procurando desviar o olhar, porém não fui capaz. Era como se travássemos um diálogo inteiro apenas com o brilho que reluzia em nossas íris negras, como dois pássaros canoros a se fitarem no momento que antecede o canto. Eu entendi, então, o que eu dizia a mim mesmo naquele instante.

Corra. Ela pode não estar muito longe.

Mas quem? De quem está falando?

Do anjo.

O que tem a ver o anjo comigo?

Você a ama.

Será?

Olhe dentro do seu coração e terá essa resposta.

Lancei-me contra o breu em corrida, acompanhado de perto por meu alter-ego, sendo atormentado por pensamentos inconstantes e assustadores acerca do que poderia lá habitar. Quando atravessei-o, não me restaram quaisquer resquícios de dúvida no coração. O que encontrei do outro lado era pleno, cândido e acolhedor. Abrasava-me a alma, espantava-me os temores e acalmava-me o coração. O que encontrei, muitos passam a vida sem experimentar. Uma sensação simples e complexa, evidente e oculta, dispersa e centrada. O sentimento era o mais nobre e desprovido de máculas dentre aqueles nutridos pelo ser humano.

O amor.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Em tinta preta


Vem! Encanta-me a tua face
Intrigada a contemplar o desenlace
Da poesia derradeira. Goza
O momento com curiosidade jubilosa,

Espia por sobre meus ombros
As palavras que, de escombros,
Passam a plácidos castelos -
O som de espadas a chocarem-se em duelos;

O farfalhar das folhas d'outono vindouro;
As areias afuniladas na ampulheta;
Marteladas do artesão no couro.

Assim caminha a pena na caderneta,
Transformando a pedra bruta em ouro -
Um mundo que se exprime em tinta preta.

domingo, 12 de setembro de 2010

Reinvenção


Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

("Quase", Mário de Sá Carneiro)



Reinvento-me a cada dia. Este é o lema, e ele há de ser seguido.

Venho pensando muito em Mário de Sá Carneiro ultimamente. A razão? Eu mesmo desconheço. Creio que a inspiração que, numa lufada tácita de pé de vento e com o farfalhar de folhas de outono, trouxe a reminiscência do poeta português foi uma indagação que me foi feita recentemente:

- Qual o seu maior medo?

Tremi.

Sim, pois não o sei. Não o soube responder. Passei dias, semanas maturando, ruminando a questão até chegar a uma resposta. Meu medo, pensei eu, é morrer sem deixar legado algum, como o ilustre poeta supracitado. Todavia, veio-me um segundo pensamento, uma torrente de epifanias que me levou a uma segunda interpretação da resposta alcançada. Meu medo é, de fato, morrer sem saber quem sou. E esta é, conclusivamente, a maior mensagem que Mário de Sá Carneiro nos deixa em seus escritos, pois tudo fez e nada edificou.

- Serei eu assim? - Fora a pergunta que me acometera em seguida. Rastejo, levito, me abaixo e levanto sucessivamente. Busco, perscruto, investigo. E nada.

Eis o retrato da vida. - Mas basta! - Fora o que eu dissera, de boca cheia, tal como o faziam as rainhas inglesas diante da criadagem. Exceto pelo fato de que não há quem me sirva. Nasci para ser um, não dois. Isso já descobri, penso eu. Quero experimentar as coisas da vida intensamente, quero apreender o mundo na palma da mão e esmagá-lo com veemência, assistindo aos caudalosos mares se esvairem pelas frestas de meus dedos.

Sexo. Drogas. Arte.

Fumei quatro cigarros hoje. Logo eu, que dizia que nunca seria capaz de colocar sequer um na boca. Dormi com uma mulher dez anos mais velha. Foi revigorante. Penso que as coisas da vida são simples; trata-se de um encadeamento de escolhas e as veredas que resultam delas. Existe a vontade, oriunda do instinto, do holístico, e existe a razão. Optei por dar maior vazão a elas, deixar que conversem. Contemplei placidamente as duas sentando-se à mesa, requisitando ao bem vestido garçom uma xícara de café preto fumegante. E riam.

Riam como loucas.

Ainda quero fumar maconha. Foi uma vontade que tive e que agora, de sobressalto, vem ao meu encontro como um círculo de espadas do qual eu - desesperado, buscando uma saída a todo preço - somente me verei livre se decidir sangrar. A vida é uma sangria desatada, um mar de pérolas brancas em que ficamos à deriva trôpegos, cegos, buscando tão somente a pérola negra. E esta jamais vem.

Por que desejamos somente aquilo que não podemos ter? Desejei uma mulher comprometida. Aliás, "comprometimento". Seria o homem destinado a ser monôgame, exaurindo-se de seus anseios, matando dentro de si o instinto que o faz animal - um mamífero, tal qual um boi ou um carneiro? Ainda assim, observo a natureza. Os leões são capazes de tudo para manterem suas parceiras. Capazes, inclusive, de assassinar os próprios filhos.

Sou de leão. Trinta de julho. Mas jamais mataria meus filhos. Jamais faria mal a uma criança. Penso que são as criaturas mais perfeitas do universo, o ser humano em seu estágio absoluto de existência. Vejo nos olhos de uma criança a salvação que muitos procuram na mente sórdida de um adulto. Finalmente, disse então, descobri o que me aflige. Sou criança. Uma criança crescida, presa com grilhões de prata na Terra do Nunca, da qual me recuso a sair mesmo tendo a chave de minhas algemas no bolso do paletó. E de madrugada, brinco de ser adulto. Esquivo-me como um verdadeiro escapista dos laços que me condenam e regresso ao encontro da boêmia. Com ela danço, canto e gargalho um riso estupefante. É como estar vivo, mas sem os estigmas sociais a me podarem e punirem a todo momento.

Danilo Gentili já dissera o que há para ser dito. O politicamente correto está deixando as pessoas idiotas. Quando se deviam ocupar do conteúdo, atentam-se à forma e fazem dela a única partícula da mensagem digna de ser criticada. E criticam - sem fundamento, sem coerência.

Criticam sem vontade.

E por falar em vontade, retorno ao ponto de partida e atinjo o clímax destes questionamentos. Sinto-me à beira de um orgasmo: a reinvenção!

Reinvento-me a cada dia. Este é o lema, e ele há de ser seguido.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vitae


Éramos dois.

Ele, racional. Eu, emocional. Comandávamos uma grande empresa, com inúmeros funcionários que trabalhavam para nós, e funcionários que trabalhavam para nossos funcionários. Regíamos com harmonia ímpar nossa jurisdição, contudo, as coisas entre nós não estavam lá muito boas. Eram sempre as mesmas reclamações: eu, afável e singelo, buscava aproximar os subalternos, unir as classes de operários e evitar que quaisquer arritmias na circulação da companhia causassem danos irreparáveis ao sistema, ao passo que ele, imparcial e diligente, optava por uma abordagem mais justa, evitando favorecer uns e outros enquanto que, com nervos de aço, regia a orquestra corporativa seguindo as regras ao pé da letra.

Os conflitos iam e vinham de maneira cíclica, consuetudinária, até que - inexplicavelmente -, eles pararam. Quando me dei conta, foi-me revelada a razão: ele se apaixonara. E, para minha surpresa, adentrou meu escritório com certa rigidez, buscando conselhos de quem outrora era considerado seu maior inimigo. Sentei-me, depositei a mão em seu ombro e, olhando-o nos olhos, disse-lhe que fosse íntegro, verdadeiro, que buscasse mostrar à pessoa amada sua essência, proveniente do âmago que muitos admiram dentro dos domínios da empresa. Lá ele permanecera, impassível, como se estivesse a perscrutar minha alma e absorver cada miligrama de sabedoria que eu me dispunha a transmitir. Ao se levantar, agradeceu. Soara mais como um grunhido, algo proferido à contragosto, mas ainda assim me arrancou um largo sorriso do semblante. Deixei-lhe claro que poderia me procurar, pois era tão somente com auxílio de amigos e pessoas próximas que conseguiria atingir seus objetivos.

Uma semana se passou. Dele, nada mais ouvi. Passei a procurá-lo pela jurisdição, mas pouco o via. Estava visivelmente atarefado; suas funções de líder criativo e intelectual da companhia se acumularam com a tentativa aparentemente infrutífera de se engajar em um novo relacionamento, tornando-o cada vez mais ausente. Buscava-o na cafeteria, nas salas de convívio dos funcionários, na recepção. Com o tempo, um sentimento curioso foi desabrochando em mim; já não o via mais como sócio, como colega de trabalho e companheiro de negócios. Ter-se aberto a mim e desabafado seus dédalos interiores me foi suficiente para despertar a paixão. Já me pegava à noite suspirando, pensando nele, escrevendo poemas e fantasiando situações. Outras duas semanas se passaram e eu já o amava. O pior de tudo é que, graças à circulação de informações da empresa, ele já havia tomado conhecimento da situação. Chegara à porta de meu escritório como quem não quer nada, de cabeça erguida e ombros resolutos. Sentara com as pernas cruzadas diante de mim, observando cada reação, cada espasmo involuntário de êxtase que se aflorava em meu corpo. E então, suavemente, dissera: a pessoa por quem estive apaixonado é você.

Houve uma onda de regozijo e júbilo que tomou conta por completo da sala onde estávamos. Beijamo-nos: efusiva e calorosamente, como se o chão fosse definhar por debaixo de nossos pés e o sol se houvesse escondido para sempre, prenunciando o fim dos tempos como são por nós conhecidos. Não passou um ano para que nos casássemos. Morávamos juntos num grande complexo de edifícios próximos à empresa, para que pudéssemos ter acesso ao ambiente de trabalho sem maiores obstáculos. Apesar do amor que nutríamos, vivíamos em quartos separados. Ele, debaixo de uma grande abóbada fortemente edificada, que o protegia de seus medos e anseios inerentes à condição de sua existência. Eu, por minha vez, tinha lá minha parcela de proteção, contudo, optei por deixar pequenas janelas entre as paredes que me cercavam, de modo que pudesse contemplar a vizinhança e ter com ela momentos de interação e socialização.

Vivíamos em prol um do outro e sabíamos, mesmo que não fosse proferida palavra alguma, que no exato momento em que um deixasse de existir, o outro definharia em seguida.

Meu nome é Coração, e o de meu esposo, Cérebro.

Esperamos que se tenha aprazido de nossa história.

sábado, 14 de agosto de 2010

Reminiscências

A criança no espelho

Que trazem nas manhãs os vendavais?
Fatos de flores frígidas? Enfim
O fugaz flautear do serafim?
Memórias tristes d'outros carnavais?

O cômodo desfaz-se nos anais

De divagações plácidas sem fim;
Na porta, o espelho de marfim
Reflete a criança sem seus pais.


Será o filho que não pude ter?
Ouso crer que a imagem cujo breu
Criou não é miragem, mas um ser.

Crível ou não, a dúvida cedeu

Quando a verdade me pus a saber:
A criança no espelho era eu.

sábado, 31 de julho de 2010

Paixão


"São vagalumes. Vagalumes grudados naquela coisa grande azul-escura."
- Timão sobre as estrelas

Sou romântico. Inegável. Houve momentos em que sê-lo me trouxe certos problemas, uma vez que - infelizmente - o mundo moderno é agitado e superficial demais para que as pessoas se atenham a banalidades como flores, poemas e declarações de amor. Não coloco chocolates na listagem porque, francamente, no dia em que alguém disser que não gosta de ganhar chocolates, eu volto a frequentar a igreja.

Ou não.

Costumo metaforizar a paixão como vagalumes. É algo que irrompe do breu, totalmente vindo do nada, e passa a brilhar em intensidade progressiva e irremediável. Você não sabe por que diabos eles brilham, nem tampouco de onde eles vêm ou pra onde eles vão. Só o que você sabe - ou melhor, sente é uma comichão interna, um entroncamento na garganta, que faz com que se abra aquele sorriso enorme apenas ao vê-los agitarem suas pequenas asas na moldura aconchegante da noite.

Quem nunca se sentiu assim ao ver a pessoa de quem se gosta?

O mundo anda em velocidade impossível de acompanhar. E o que realmente importa escapa bem diante dos nossos olhos. Faço um convite a todos: observem os vagalumes. Sua vida poderá se tornar muito mais simples em seguida.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Torpor funesto


O que é a morte, pergunto eu,
Senão um estado de espírito latente?
Reincidente, como Prometeu,
Sufoco-me nesta existência penitente.

Membros apartados, álcool e cigarros;
A úlcera se torna leve comichão.
As chagas já espalham sangue pelo chão;
O câncer não é mais que náuseas e pigarros.

E a indagação permeia o que restou do cérebro:
O que tem a morte de tão extravagante?
Seriam maquinações infindáveis de Érebo
Ou um passeio de barco eterno e relaxante?

Membros destroçados, cocaína e absinto;
As batidas de um coração eu já não sinto.
Decapitado, sofro apenas um leve beliscão -
A cabeça sorridente rolando no saguão.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Dente (in) de siso


Sim, o trocadilho foi péssimo.

Mas não me exime de falar deste assunto que nós - ou ao menos boa parte do contingente humano - conhecemos profundamente: a dor do siso. Antes de mais nada, breve explanação há de ser feita. Trata-se do terceiro molar, aquele cuja função é questionável, que nasce tão perto da parte interna da sua bochecha que por vezes se projeta perigosamente de modo a dilacerar parte dela. Sem falar no sofrimento que causa à gengiva. Tal protuberância óssea pode ter sua erupção bloqueada pela colisão com outros dentes - ou, como ocorreu duplamente em minha família, com o palato duro (céu da boca).

É interessante observarmos, contudo, que as novas gerações estão nascendo sem este nefasto agente da dor. As causas são puramente antropológicas: tudo o que uma espécie relega à inutilidade em termos evolutivos é descartado com o tempo. Seria o caso da cauda do ser humano, cuja possível existência é revelada pelo cóccix - aquele ossinho situado no término da coluna vertebral que não serve pra nada a não ser topar dolorosamente com superfícies rígidas, algo bastante semelhante ao dedo mínimo do pé.

Deve estar se perguntando, glorioso leitor, ao ter visto a imagem que abre estes escritos, o que diabos tem o cu a ver com as calças. Eu explico: tudo. Reconhecem, por certo, aquele olhar vidrado, típico da indecisão; do indivíduo aturdido, estupefato, cujo chão se dissipou abaixo de seus pés. É exatamente desta forma que se sente o dente de siso. Pense em sua situação: lá se encontra, escondido de maneira claustrofóbica dentro de um cubículo, aguardando o momento certo para - com sorte - perscrutar através de tão esquálida trincheira e receber os louros da vitória ao contemplar a caverna de bafo quente que se prostra diante dele. São tantos os obstáculos, tantas as adversidades, que o simples fato de continuar existindo já lhe é um ato de bravura per se. E por fim, quando pensa ter saído vitorioso de sanguinolenta batalha, o temerário dente de siso é extraído bruscamente de sua boca por forças esotéricas e desconhecidas: as mãos do dentista.

O mesmo se aplica, de maneira mais direcionada, ao parto. O ato de dar à luz uma criança é tão contrário a si mesmo que a simples reflexão já o torna inconcebível. E, contudo, ainda assim persiste ao longo da existência humana, sendo retratado das mais variadas maneiras - e nos mais variados lugares, diga-se de passagem - pela mídia e pelos ramos da arte. Parto, digo eu, mas não se limite a vislumbrar o primeiro choro do recém-nascido. Pense na maiêutica socrática - o parto das ideias -, em que estruturar um pensamento, criar uma teoria, é uma verdadeira gênese física, fisiológica e espiritual.

Conhece-te a ti mesmo, era o que dizia o filósofo. Portanto e assim sendo, relega-te, leitor, à condição de eterno aprendiz da vida; respire fundo, feche os olhos e diga para si próprio: eu sou um dente do siso. Nasço, cresço, evoluo e regresso às mãos de uma força maior. Se é Deus ou não, pouco me compete dizê-lo. Eu acredito em energias - as mesmas que uso para dar à luz estas palavras.

Parabéns, dissera o médico com o rebento nos braços. Ele é a cara do pai.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Da hipocrisia humana

África.

É impressionante observar, caro leitor do Criogenia Cerebral, o rebuliço que se formou em torno do continente supracitado após o início da Copa do Mundo 2010. Eis que as nações do globo resolvem momentâneamente curar o glaucoma que se abateu sobre elas e expandir seus horizontes para além e aquém de suas fronteiras. Muito se fala da África: o continente-mãe, o coração do mundo. Será mesmo?

Pergunto-me onde estavam estes supostos aliados - tais nações que se rotulam entusiastas do povo africano - durante o Apartheid. Onde estavam quando Nelson Mandela dedicou-se euforicamente à causa negra? E os massacres? As memórias do que ocorreu em Rwanda ainda assombram os descendentes daqueles que lá perderam suas vidas. Acho engraçado músicos e grandes multinacionais compondo canções cujo propósito é enaltecer a África. O pior de tudo é que funciona: o negrinho não sabe ler ou escrever, é subnutrido e moribundo, mas conhece e adora a maldita Coca-Cola. Futuramente, veremos a flâmula alvirrubra de tal marca de refrigerantes substituindo as imagens e símbolos nas mecas e igrejas. Os iconoclastas, ao invés de entoarem cânticos e louvores, estarão cantarolando os jingles das propagandas televisivas.

Tais reflexões sucitam outra observação: a febre ocasionada pelo futebol. É inebriante. As criaturas humanas se reúnem, abraçam e festejam diante da televisão, unindo-se sob o mesmo prisma verde-e-amarelo. O mundo cessa seus movimentos de rotação e translação. Empresas fecham suas portas; estabelecimentos comerciais liberam seus funcionários. Há uma aura de letargia que se abate contra os homens e mulheres e os transforma em zumbis acéfalos e vidrados nos vinte e dois homens correndo atrás da famigerada jabulani em campo. Observemos, contudo, que quando a febre se esvai e a Copa se encerra, voltamos à velha falsa ausência de alteridade, o enaltecer do individualismo, a incapacidade de olhar para o lado e indagar plácidamente ao companheiro se ele necessita de cuidados.

Eis o retrato da hipocrisia humana.

Encerro com as palavras de Mia Couto, escritor africano, que engendram uma síntese do que se disse até então:

Salvar é uma grande palavra. E amor é uma palavra ainda maior. Grandes palavras escondem grandes enganos.


E aí? Alguém ainda quer "salvar" a África?

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Prenúncio

Olá, você!

Indivíduo que se deu ao trabalho de abrir este blog e, não contente, ler seu conteúdo - coisa rara nestes dias. Na era em que a preguiça impera e a simples interatividade é posta em segundo plano, qualquer clique a mais já é bem-vindo. Ou seria benvindo? Maldita reforma ortográfica.

Sobre a preguiça, pois é. Ela existe. Até no sexo.

Ah, amor, hoje vou colocar só a cabecinha pra não fazer muito esforço.

Que foi? Achou graça? Pois não devia. A coisa é grave.

De qualquer forma, o Criogenia Cerebral se põe a serviço de angariar fundos para a causa das baleias jubartes. Temos patrocínio do Greenpeace até o presente momento e oramos - figurativamente falando - para que não sejam atacados por piratas ou navios arpoadores. Nosso objetivo é relativamente simples: deixar um legado, por mais ínfimo que seja, para as gerações futuras. Congelar nossos cérebros à -150° C. e preservá-los em câmaras de animação suspensa. Gerar conhecimento, qualquer que seja ele, e debater assuntos polêmicos - ou não - de modo a construir um imaginário popular de ladainhas e outras conjecturas pagãs.

Não entendeu nada? É. Você vai ver muito disso por aqui. Aliás, cinema também - minha terceira paixão.

Enfim, atribuo tal iniciativa para criar este espaço ao completo ócio da madrugada. Houveram questões egoísticas envolvidas no processo criativo, evidentemente, mas a letargia do nada-para-fazer somada ao frio de início de inverno são as principais forças motrizes destes escritos.

Sê bem vindo ao laboratório. Arraste uma cadeira, vista o jaleco e proteja-se. Falaremos de ciência - a ciência da vida real.

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça para o total.
- Guimarães Rosa (Grande sertão: veredas)