domingo, 27 de fevereiro de 2011

A rainha das frutas




Há muito tempo foi inaugurada uma nova fruteira na cidade, e as frutas - alvoroçadas e cheias de esperança - inscreveram-se para o concurso anual que elegeria o Rei das Frutas daquele novo estabelecimento. A fruta que, através de um discurso inflamado e muito persuasivo, conseguisse convencer os jurados de sua superioridade, seria eleita e coroada naquele mesmo instante.

O primeiro a subir ao palanque foi o abacaxi. Bastante pomposo e cheio de si, falou em alto e bom tom:

- Eu devo ser coroado porque desde o meu nascimento sou agraciado com a ostentação de uma coroa em minha cabeça. Sou um rei nato, nada se coloca acima de mim.

Em seguida, veio a maçã. Sua face rosada e reluzente espelhava sua personalidade sedutora e cativante.

- Portar uma coroa não quer dizer nada, meu amigo - dizia ela. Não passa de um artefato barato e sem valor. São os fatos - aqueles incontestáveis - que afirmam a superioridade de alguém. Eu, a maçã, fui a razão de todos vocês estarem aqui. Não fosse Eva e o Pecado Original, ainda viveríamos no Paraíso. Fui capaz de condenar toda a humanidade à uma vida mundana sem sequer descer de meu galho, portanto julgo-me perfeitamente apta a receber o título de rainha.

Houve grande comoção e aplausos por parte da plateia. Ainda assim, o júri permaneceu impassível. Havia de haver razão mais grandiosa que merecesse aquele prêmio, pois uma coroa é, de fato, objeto frívolo e nem todos creem no Criacionismo. Foi então que, no auge de sua sensualidade - dotada de um lancinante olhar voluptuoso que fez todos os convidados estremecerem em suas cadeiras -, a cereja subiu ao palco e prostrou-se diante do púlpito com o microfone nas mãos, bastante próximo aos seus lábios veludosos.

- A rainha das frutas serei eu - ela dissera em cadência bastante pausada, quase solene. - Os homens buscam riqueza e poder, como bem argumentou o senhor abacaxi; buscam a absolvição de seus pecados, como salientou a dona maçã, mas há algo muitíssimo mais emergente que faz com que homens de todas as idades, raças e credos percam noites em claro pela simples mênção de seu nome. Trata-se de algo que, assim como eu, é avermelhado, carnudo, e bastante suculento. Sou colocada em taças de bebidas, adicionada a coberturas de bolos, disposta nas mesas de Natal, utilizada como recheio de bombons e outras guloseimas igualmente saborosas, tudo isso para lembrar ao homem que me devora a quem ele deve real obediência.

Os jurados entreolharam-se, como se através de um simples olhar já houvessem compreendido quem seria premiado. A cereja empertigou-se, deu um passo a frente e ensaiou uma breve comemoração de vitória. Entretanto, quando o jurado-mestre anunciou o vencedor, o sorriso brevemente desfez-se em sua face delicada.

- A Rainha das Frutas deste ano é a banana - eles disseram. Uma tempestade torrencial de aplausos e ovações tomou conta do recinto, enquanto a cereja punha-se a berrar e a espernear buscando uma oportunidade de ser ouvida. Quando o silêncio finalmente reinou no grande salão, a pequena e ousada frutinha rasgou o verbo:

- Isso é um absurdo! Sob que alegação esta fruta sem graça venceu o concurso? O que poderia ser mais atraente e poderoso do que eu? Não compreenderam bem a explicação que dei? Talvez devessem lavar os ouvidos!

E a banana, com muita classe e elegância, pediu com gentileza o microfone para o contra-regra e disse em alto e bom tom:

- Minha filha, você tá muito retrô. Não são mais as cerejas que controlam o universo. Nós bananas alimentamos, previnimos cãibra, servimos como matéria-prima para uma série de pratos da culinária brasileira e, na falta de coisa melhor, ainda prestamos consolo às suas patroas em momentos de necessidade. Pra que haja fruta mais multi-uso, só se você me enrolar numa embalagem de Bombril.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

És bailarina


Podes ser dispersa, podes ser faceira, mas quando sobes ao palco,
Maquiagem no rosto, nas mãos e pés o pálido talco,
Lágrimas e sorrisos se mesclam ao jubiloso momento -
A disciplina e a garra de quem busca reconhecimento.

As luzes se apagam, mas não a chama em seu coração;
O sonho não acabou, nem tampouco a labuta, a árdua insistência;
Semanas de ensaios, meses de aperfeiçoamento, anos de dedicação.
Meninas, moças, mulheres em busca da perfeição, da magistral magnificência.

És bailarina, choras, carregas este fardo no peito e não se cansa!
Nas mãos os calos, no corpo o desgaste derradeiro.
Mas tudo se desfaz como que por mágica; regressa a esperança
Quando desponta na plateia o sorriso de criança:
Um sorriso verdadeiro.

(poema em homenagem ao debute de minha irmã)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Auréola, candura e... olhos verdes?


"Somos todos anjos com uma só asa: só podemos voar abraçados uns aos outros."
- Luciano de Crescenzo

Meus olhos se abriram lentamente quando alcei voo pela primeira vez.

Lá estava eu, em pleno ar; minhas asas se batiam debilmente em busca de estabilidade; meus pés procuravam - em vão - por algum apoio, enquanto meus braços enrijecidos eram marcados pelas veias saltadas do medo que nelas corria. Rangia os dentes e suava frio, pois já me encontrava há mais de dez metros do solo. Ouvi um som ligeiramente familiar, um som de alerta, mas optei por ignorá-lo. O êstase do voo me havia anuviado os sentidos; todo e qualquer movimento que fizesse naquele instante seria dispensável. Um mero piscar de olhos poderia me custar milésimos de segundo vitais para a apreciação do evento.

Lá de cima, entre nuvens e pássaros migratórios, senti a brisa de meados de outono agitar placidamente meus cabelos. Fechei os olhos e enxerguei, então, o que parecia ser meu rosto lá embaixo, deitado no pavimento, pálido e desfalecido. Mal pude me conter. Como, pensei eu, seria possível que uma mesma pessoa ocupasse dois lugares ao mesmo tempo! Conforme fui me aproximando, não restavam mais dúvidas da identidade do moribundo. Os cabelos negros, a expressão cordial, os olhos astutos de desbravador oriental. Ajoelhei-me diante de mim e sorri. Tão singela era a expressão que despontava em meu semblante! Apesar da aparência mórbida, os lábios ainda sorriam em júbilo reverberante. Toquei meu peito com mãos trêmulas e constatei a verdade: lá dentro, um coração não batia.

Quando abri meus olhos uma vez mais, a cena se havia alterado e um estupor aturdiu-me os sentidos. Jazia meu corpo nu deitado num jazigo de pétalas de rosas brancas. Olhei ao redor e nada pude compreender. Não havia paredes, nem teto ou assoalho, nem tampouco pessoas ou outras entidades que me pudessem explicar o que sucedia. Tomei o pulso do outro eu em mãos e apertei-o contra o peito. Uma lágrima órfã e desmotivada correu por meu rosto até pingar no dedo indicador do cadáver. Notei, então, que apontava em direção a certo ponto na escuridão, onde habitava tão somente um breu indescritível. Ao melhor observá-lo, pude notar dois olhos verdes como brincos de jade a espreitar-me.

- Quem está aí? - perguntei. Em lugar da resposta verbal, a entidade deu dois passos à frente. Era uma mulher. Mas não uma qualquer, como pude constatar posteriormente: tinha asas emplumadas como pombas brancas; face rósea e ruborizada; cabelos ondulados de um castanho-claro encantador, que lhe emolduravam o rosto como um quadro renascentista. Acima de sua cabeça notava-se uma tremeluzente auréola, que reluzia o verde de seus olhos e o refletia em direção ao meu rosto enquanto a encarava atônito.

Era um anjo.

Aproximou-se do eu deitado no leito e debruçou-se sobre ele, baixando a cabeça com a graciosidade de uma bailarina em direção ao seu rosto. Seus lábios se tocaram por uma fração de segundo que para mim durou uma eternidade e, em seguida, ela avançou em minha direção com passos silentes. As palavras que sussurrou em meu ouvido provocaram-me arrepios de imediato; arraigaram-se em minha mente de tal maneira que ainda hoje me posso delas recordar.

Cuida do que é teu, ela dissera, pois pode não haver uma segunda chance.

Assisti-a regressar ao breu de onde irrompera com o mesmo ar de mistério e beleza com que a avistei pela primeira vez. Para minha surpresa, o eu acamado ergueu o tronco até a posição vertical e, sentado, olhou-me no fundo dos olhos. Observei-o de resposta, procurando desviar o olhar, porém não fui capaz. Era como se travássemos um diálogo inteiro apenas com o brilho que reluzia em nossas íris negras, como dois pássaros canoros a se fitarem no momento que antecede o canto. Eu entendi, então, o que eu dizia a mim mesmo naquele instante.

Corra. Ela pode não estar muito longe.

Mas quem? De quem está falando?

Do anjo.

O que tem a ver o anjo comigo?

Você a ama.

Será?

Olhe dentro do seu coração e terá essa resposta.

Lancei-me contra o breu em corrida, acompanhado de perto por meu alter-ego, sendo atormentado por pensamentos inconstantes e assustadores acerca do que poderia lá habitar. Quando atravessei-o, não me restaram quaisquer resquícios de dúvida no coração. O que encontrei do outro lado era pleno, cândido e acolhedor. Abrasava-me a alma, espantava-me os temores e acalmava-me o coração. O que encontrei, muitos passam a vida sem experimentar. Uma sensação simples e complexa, evidente e oculta, dispersa e centrada. O sentimento era o mais nobre e desprovido de máculas dentre aqueles nutridos pelo ser humano.

O amor.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Em tinta preta


Vem! Encanta-me a tua face
Intrigada a contemplar o desenlace
Da poesia derradeira. Goza
O momento com curiosidade jubilosa,

Espia por sobre meus ombros
As palavras que, de escombros,
Passam a plácidos castelos -
O som de espadas a chocarem-se em duelos;

O farfalhar das folhas d'outono vindouro;
As areias afuniladas na ampulheta;
Marteladas do artesão no couro.

Assim caminha a pena na caderneta,
Transformando a pedra bruta em ouro -
Um mundo que se exprime em tinta preta.

domingo, 12 de setembro de 2010

Reinvenção


Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

("Quase", Mário de Sá Carneiro)



Reinvento-me a cada dia. Este é o lema, e ele há de ser seguido.

Venho pensando muito em Mário de Sá Carneiro ultimamente. A razão? Eu mesmo desconheço. Creio que a inspiração que, numa lufada tácita de pé de vento e com o farfalhar de folhas de outono, trouxe a reminiscência do poeta português foi uma indagação que me foi feita recentemente:

- Qual o seu maior medo?

Tremi.

Sim, pois não o sei. Não o soube responder. Passei dias, semanas maturando, ruminando a questão até chegar a uma resposta. Meu medo, pensei eu, é morrer sem deixar legado algum, como o ilustre poeta supracitado. Todavia, veio-me um segundo pensamento, uma torrente de epifanias que me levou a uma segunda interpretação da resposta alcançada. Meu medo é, de fato, morrer sem saber quem sou. E esta é, conclusivamente, a maior mensagem que Mário de Sá Carneiro nos deixa em seus escritos, pois tudo fez e nada edificou.

- Serei eu assim? - Fora a pergunta que me acometera em seguida. Rastejo, levito, me abaixo e levanto sucessivamente. Busco, perscruto, investigo. E nada.

Eis o retrato da vida. - Mas basta! - Fora o que eu dissera, de boca cheia, tal como o faziam as rainhas inglesas diante da criadagem. Exceto pelo fato de que não há quem me sirva. Nasci para ser um, não dois. Isso já descobri, penso eu. Quero experimentar as coisas da vida intensamente, quero apreender o mundo na palma da mão e esmagá-lo com veemência, assistindo aos caudalosos mares se esvairem pelas frestas de meus dedos.

Sexo. Drogas. Arte.

Fumei quatro cigarros hoje. Logo eu, que dizia que nunca seria capaz de colocar sequer um na boca. Dormi com uma mulher dez anos mais velha. Foi revigorante. Penso que as coisas da vida são simples; trata-se de um encadeamento de escolhas e as veredas que resultam delas. Existe a vontade, oriunda do instinto, do holístico, e existe a razão. Optei por dar maior vazão a elas, deixar que conversem. Contemplei placidamente as duas sentando-se à mesa, requisitando ao bem vestido garçom uma xícara de café preto fumegante. E riam.

Riam como loucas.

Ainda quero fumar maconha. Foi uma vontade que tive e que agora, de sobressalto, vem ao meu encontro como um círculo de espadas do qual eu - desesperado, buscando uma saída a todo preço - somente me verei livre se decidir sangrar. A vida é uma sangria desatada, um mar de pérolas brancas em que ficamos à deriva trôpegos, cegos, buscando tão somente a pérola negra. E esta jamais vem.

Por que desejamos somente aquilo que não podemos ter? Desejei uma mulher comprometida. Aliás, "comprometimento". Seria o homem destinado a ser monôgame, exaurindo-se de seus anseios, matando dentro de si o instinto que o faz animal - um mamífero, tal qual um boi ou um carneiro? Ainda assim, observo a natureza. Os leões são capazes de tudo para manterem suas parceiras. Capazes, inclusive, de assassinar os próprios filhos.

Sou de leão. Trinta de julho. Mas jamais mataria meus filhos. Jamais faria mal a uma criança. Penso que são as criaturas mais perfeitas do universo, o ser humano em seu estágio absoluto de existência. Vejo nos olhos de uma criança a salvação que muitos procuram na mente sórdida de um adulto. Finalmente, disse então, descobri o que me aflige. Sou criança. Uma criança crescida, presa com grilhões de prata na Terra do Nunca, da qual me recuso a sair mesmo tendo a chave de minhas algemas no bolso do paletó. E de madrugada, brinco de ser adulto. Esquivo-me como um verdadeiro escapista dos laços que me condenam e regresso ao encontro da boêmia. Com ela danço, canto e gargalho um riso estupefante. É como estar vivo, mas sem os estigmas sociais a me podarem e punirem a todo momento.

Danilo Gentili já dissera o que há para ser dito. O politicamente correto está deixando as pessoas idiotas. Quando se deviam ocupar do conteúdo, atentam-se à forma e fazem dela a única partícula da mensagem digna de ser criticada. E criticam - sem fundamento, sem coerência.

Criticam sem vontade.

E por falar em vontade, retorno ao ponto de partida e atinjo o clímax destes questionamentos. Sinto-me à beira de um orgasmo: a reinvenção!

Reinvento-me a cada dia. Este é o lema, e ele há de ser seguido.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vitae


Éramos dois.

Ele, racional. Eu, emocional. Comandávamos uma grande empresa, com inúmeros funcionários que trabalhavam para nós, e funcionários que trabalhavam para nossos funcionários. Regíamos com harmonia ímpar nossa jurisdição, contudo, as coisas entre nós não estavam lá muito boas. Eram sempre as mesmas reclamações: eu, afável e singelo, buscava aproximar os subalternos, unir as classes de operários e evitar que quaisquer arritmias na circulação da companhia causassem danos irreparáveis ao sistema, ao passo que ele, imparcial e diligente, optava por uma abordagem mais justa, evitando favorecer uns e outros enquanto que, com nervos de aço, regia a orquestra corporativa seguindo as regras ao pé da letra.

Os conflitos iam e vinham de maneira cíclica, consuetudinária, até que - inexplicavelmente -, eles pararam. Quando me dei conta, foi-me revelada a razão: ele se apaixonara. E, para minha surpresa, adentrou meu escritório com certa rigidez, buscando conselhos de quem outrora era considerado seu maior inimigo. Sentei-me, depositei a mão em seu ombro e, olhando-o nos olhos, disse-lhe que fosse íntegro, verdadeiro, que buscasse mostrar à pessoa amada sua essência, proveniente do âmago que muitos admiram dentro dos domínios da empresa. Lá ele permanecera, impassível, como se estivesse a perscrutar minha alma e absorver cada miligrama de sabedoria que eu me dispunha a transmitir. Ao se levantar, agradeceu. Soara mais como um grunhido, algo proferido à contragosto, mas ainda assim me arrancou um largo sorriso do semblante. Deixei-lhe claro que poderia me procurar, pois era tão somente com auxílio de amigos e pessoas próximas que conseguiria atingir seus objetivos.

Uma semana se passou. Dele, nada mais ouvi. Passei a procurá-lo pela jurisdição, mas pouco o via. Estava visivelmente atarefado; suas funções de líder criativo e intelectual da companhia se acumularam com a tentativa aparentemente infrutífera de se engajar em um novo relacionamento, tornando-o cada vez mais ausente. Buscava-o na cafeteria, nas salas de convívio dos funcionários, na recepção. Com o tempo, um sentimento curioso foi desabrochando em mim; já não o via mais como sócio, como colega de trabalho e companheiro de negócios. Ter-se aberto a mim e desabafado seus dédalos interiores me foi suficiente para despertar a paixão. Já me pegava à noite suspirando, pensando nele, escrevendo poemas e fantasiando situações. Outras duas semanas se passaram e eu já o amava. O pior de tudo é que, graças à circulação de informações da empresa, ele já havia tomado conhecimento da situação. Chegara à porta de meu escritório como quem não quer nada, de cabeça erguida e ombros resolutos. Sentara com as pernas cruzadas diante de mim, observando cada reação, cada espasmo involuntário de êxtase que se aflorava em meu corpo. E então, suavemente, dissera: a pessoa por quem estive apaixonado é você.

Houve uma onda de regozijo e júbilo que tomou conta por completo da sala onde estávamos. Beijamo-nos: efusiva e calorosamente, como se o chão fosse definhar por debaixo de nossos pés e o sol se houvesse escondido para sempre, prenunciando o fim dos tempos como são por nós conhecidos. Não passou um ano para que nos casássemos. Morávamos juntos num grande complexo de edifícios próximos à empresa, para que pudéssemos ter acesso ao ambiente de trabalho sem maiores obstáculos. Apesar do amor que nutríamos, vivíamos em quartos separados. Ele, debaixo de uma grande abóbada fortemente edificada, que o protegia de seus medos e anseios inerentes à condição de sua existência. Eu, por minha vez, tinha lá minha parcela de proteção, contudo, optei por deixar pequenas janelas entre as paredes que me cercavam, de modo que pudesse contemplar a vizinhança e ter com ela momentos de interação e socialização.

Vivíamos em prol um do outro e sabíamos, mesmo que não fosse proferida palavra alguma, que no exato momento em que um deixasse de existir, o outro definharia em seguida.

Meu nome é Coração, e o de meu esposo, Cérebro.

Esperamos que se tenha aprazido de nossa história.

sábado, 14 de agosto de 2010

Reminiscências

A criança no espelho

Que trazem nas manhãs os vendavais?
Fatos de flores frígidas? Enfim
O fugaz flautear do serafim?
Memórias tristes d'outros carnavais?

O cômodo desfaz-se nos anais

De divagações plácidas sem fim;
Na porta, o espelho de marfim
Reflete a criança sem seus pais.


Será o filho que não pude ter?
Ouso crer que a imagem cujo breu
Criou não é miragem, mas um ser.

Crível ou não, a dúvida cedeu

Quando a verdade me pus a saber:
A criança no espelho era eu.