segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vitae


Éramos dois.

Ele, racional. Eu, emocional. Comandávamos uma grande empresa, com inúmeros funcionários que trabalhavam para nós, e funcionários que trabalhavam para nossos funcionários. Regíamos com harmonia ímpar nossa jurisdição, contudo, as coisas entre nós não estavam lá muito boas. Eram sempre as mesmas reclamações: eu, afável e singelo, buscava aproximar os subalternos, unir as classes de operários e evitar que quaisquer arritmias na circulação da companhia causassem danos irreparáveis ao sistema, ao passo que ele, imparcial e diligente, optava por uma abordagem mais justa, evitando favorecer uns e outros enquanto que, com nervos de aço, regia a orquestra corporativa seguindo as regras ao pé da letra.

Os conflitos iam e vinham de maneira cíclica, consuetudinária, até que - inexplicavelmente -, eles pararam. Quando me dei conta, foi-me revelada a razão: ele se apaixonara. E, para minha surpresa, adentrou meu escritório com certa rigidez, buscando conselhos de quem outrora era considerado seu maior inimigo. Sentei-me, depositei a mão em seu ombro e, olhando-o nos olhos, disse-lhe que fosse íntegro, verdadeiro, que buscasse mostrar à pessoa amada sua essência, proveniente do âmago que muitos admiram dentro dos domínios da empresa. Lá ele permanecera, impassível, como se estivesse a perscrutar minha alma e absorver cada miligrama de sabedoria que eu me dispunha a transmitir. Ao se levantar, agradeceu. Soara mais como um grunhido, algo proferido à contragosto, mas ainda assim me arrancou um largo sorriso do semblante. Deixei-lhe claro que poderia me procurar, pois era tão somente com auxílio de amigos e pessoas próximas que conseguiria atingir seus objetivos.

Uma semana se passou. Dele, nada mais ouvi. Passei a procurá-lo pela jurisdição, mas pouco o via. Estava visivelmente atarefado; suas funções de líder criativo e intelectual da companhia se acumularam com a tentativa aparentemente infrutífera de se engajar em um novo relacionamento, tornando-o cada vez mais ausente. Buscava-o na cafeteria, nas salas de convívio dos funcionários, na recepção. Com o tempo, um sentimento curioso foi desabrochando em mim; já não o via mais como sócio, como colega de trabalho e companheiro de negócios. Ter-se aberto a mim e desabafado seus dédalos interiores me foi suficiente para despertar a paixão. Já me pegava à noite suspirando, pensando nele, escrevendo poemas e fantasiando situações. Outras duas semanas se passaram e eu já o amava. O pior de tudo é que, graças à circulação de informações da empresa, ele já havia tomado conhecimento da situação. Chegara à porta de meu escritório como quem não quer nada, de cabeça erguida e ombros resolutos. Sentara com as pernas cruzadas diante de mim, observando cada reação, cada espasmo involuntário de êxtase que se aflorava em meu corpo. E então, suavemente, dissera: a pessoa por quem estive apaixonado é você.

Houve uma onda de regozijo e júbilo que tomou conta por completo da sala onde estávamos. Beijamo-nos: efusiva e calorosamente, como se o chão fosse definhar por debaixo de nossos pés e o sol se houvesse escondido para sempre, prenunciando o fim dos tempos como são por nós conhecidos. Não passou um ano para que nos casássemos. Morávamos juntos num grande complexo de edifícios próximos à empresa, para que pudéssemos ter acesso ao ambiente de trabalho sem maiores obstáculos. Apesar do amor que nutríamos, vivíamos em quartos separados. Ele, debaixo de uma grande abóbada fortemente edificada, que o protegia de seus medos e anseios inerentes à condição de sua existência. Eu, por minha vez, tinha lá minha parcela de proteção, contudo, optei por deixar pequenas janelas entre as paredes que me cercavam, de modo que pudesse contemplar a vizinhança e ter com ela momentos de interação e socialização.

Vivíamos em prol um do outro e sabíamos, mesmo que não fosse proferida palavra alguma, que no exato momento em que um deixasse de existir, o outro definharia em seguida.

Meu nome é Coração, e o de meu esposo, Cérebro.

Esperamos que se tenha aprazido de nossa história.

sábado, 14 de agosto de 2010

Reminiscências

A criança no espelho

Que trazem nas manhãs os vendavais?
Fatos de flores frígidas? Enfim
O fugaz flautear do serafim?
Memórias tristes d'outros carnavais?

O cômodo desfaz-se nos anais

De divagações plácidas sem fim;
Na porta, o espelho de marfim
Reflete a criança sem seus pais.


Será o filho que não pude ter?
Ouso crer que a imagem cujo breu
Criou não é miragem, mas um ser.

Crível ou não, a dúvida cedeu

Quando a verdade me pus a saber:
A criança no espelho era eu.